Olhar para trás
Olhar para trás obriga-nos a nunca nos desligarmos daqueles a quem queremos bem. Ajuda-nos, também, a termos cautela com o nosso futuro e, a não esquecermos os nossos trilhos. Sempre que faço uma retrospectiva sobre a minha vida por Adrão e por Paradela, não esqueço nada do passado. Vivo-o como vivo o presente.
Recordo como eram belos os tempos por Adrão, em meados do séc. passado (meados do séc XX). Mas havia um senão! Adrão tinha muita gente e gente habituada a conquistar outros mundos. Nós éramos putos e a debandada era geral. A gente de Adrão seguia vários rumos. O rumo de Lisboa, o rumo da França, o rumo da América, ... Nós, os putos, tínhamos o céu azul ou coberto de nuvens, tínhamos as rochas e os horizontes sobre os cumes das montanhas da serra de Soajo, tínhamos os bosques de Adrão com os seus carvalhais e o seu cheiro a láudano, os vidoeiros, sobreiros, castanheiros, salgueiros ... nas bouças. Tínhamos os prados de feno, os campos de milho, as hortas e, tínhamos os nossos rios, recheados de trutas e com as margens cheias de flores de silvas e as amoras silvestres. Tínhamos os nossos gados. Tínhamos tudo o que era belo, em Adrão. E tínhamos, também, os horizontes abertos sobre a serra Amarela. Então, também chegou a minha vez.
Flores das silvas e amoras que, noutros tempos, eram delícias, em Adrão
Ainda hoje sinto o perfume dos carvalhos, em Adrão. Por isso me acho um druida
Também chegou a minha vez de ultrapassar os horizontes visíveis e a saída era pela Quelha da Costa. Ali e, por acaso, nesse dia, encontrei dois dos mais belos companheiros da minha vida de então (eu esperava não encontrar ninguém). O meu irmão e a minha prima Rosa por quem ia velando como podia. Quantas vezes tomava conta de um ou do outro ou dos dois.
Ele era meu irmão e chamava-se Manuel.
Era meu irmão e continuará sempre a ser. As Parkas pensam que o tiraram de junto de mim mas não o conseguiram. Ninguém, nem as Parcas me roubam a minha gente. Para isso tinham de me roubar o coração ou, então, roubar-me a mim. Quando esse tempo chegar, talvez o consigam.
Foram assim os piores momentos da minha vida:
Um dia, 3 de Março, em 1961, peguei numa mala de cartão e o meu coração “chorava” baixinho. Encontrei-o na Quelha da Costa, em Adrão, na companhia da nossa prima Rosa Barbosa. A professora tinha faltado e não tinha havido aulas. Olharam-me e perguntaram: “para onde vais Luis”? Eu disse: “vou para Lisboa, vamos estar muito tempo sem nos vermos. Eles ficaram para trás a choramingar e eu subi a Quelha da Costa, rumo ao desconhecido.
Depois vi-o, mais duas ou três vezes, em Adrão. Da última vez tinha duas rolinhas que ele criara, presas numa gaiola. Disse-lhe: “acho que te vou soltar as rolas. Esses animais só devem viver em liberdade”. Pediu-me por tudo para não lhe soltar as rolas mas, eu só queria que ele não se habituasse a apanhar e prender os animais selvagens. Não é por acaso que as rolas bravas estão sempre no meu coração. Depois passaram anos sem nos vermos.
Faz agora 46 anos que eu me preparava para sair de Nova Freixo, no norte de Moçambique e ele era a pessoa em que eu mais pensava. Em breve estaríamos em Lisboa juntos e depois logo se via que volta darmos à nossa vida. Assim foi! Caminhamos algumas vezes juntos por Lisboa, durante algum tempo, mas a tropa separou-nos.
Manuel Franqueira
Um dia cheguei a casa e a velhota, dona da casa, onde eu vivia e ele dormiu algumas vezes, disse-me: “sr. Luis, o seu irmão partiu uma perna e levaram-no para o Hospital Militar da Estrela. Vá ter com este Sargento”. Senti que ela se evadiu da minha presença, parecendo-me chorosa. E lá fui. Cheguei à Av. Infante Santo e, quando me identifiquei, perante esse Sargento Enfermeiro, o homem começou a chorar. Deu-me a notícia. Esse sargento disse-me que ele falecera. “Morreu nos meus braços, ao atravessarmos a ponte sobre o Tejo. Está na capelinha X”. Chorava como se fosse um grande amigo seu. Eu sabia como era, pois também chorei por outros em África. Só que esses eram meus amigos.
Nunca tinha tido uma tormenta na vida, nem nos tempos mais difíceis, mas ela chegou nesse dia. Atravessei a Av. Infante Santo, completamente cego. Só ouvia os carros a apitar, suponho que, mandando vir comigo. Passei grande parte da noite, só, mais ele, nessa capelinha. Mas os seus companheiros militares pediram ao Comandante para os deixar irem prestar-lhe uma última homenagem. Iam e vinham sempre, a renderem-se, pela noite dentro. No dia seguinte, vieram a namorada mais o pai ter comigo à Estrela, também para o verem uma última vez.
Levei-o para Adrão, perdemos-nos, com o nevoeiro, na serra da Falperra, em Braga. Passamos no meio dos seus velhos amigos da Infantaria 8, em exercícios que, vendo o Armão militar e a sua urna coberta com a Bandeira Nacional, se perfilavam e apresentavam armas às ordens dos seus oficiais que faziam a continência. Parece que Deus quis que se voltassem a encontrar. Ele fizera lá a recruta. Os grupos nunca mais acabavam. Uns caminhavam na estrada da serra, outros desciam ou subiam para a estrada. Foi um pedaço da viagem que me dilacerava o coração. Eu nunca tinha visto apresentar armas por militares que caminhavam nos matos, em grupos ou isolados. Já os tinha visto, praguejar, esbracejar, chorar, ... mas nunca apresenatar armas. Metia muito respeito um Armão militar com uma urna coberta pela bandeira nacional. "Sen .. up"! Depois encaminharam-nos no meio de nevoeiros, já esfarrapados, rumo a Arcos de Valdevez.
Dos Arcos para cima, saímos bem, mas os militares não conheciam nada e eu passei o Triângulo do Mesio, sem o ver. Fomos até Soajo. Pareceu-me que o meu Senhor da Esfera o levara para se despedir de Soajo, onde tinha amigos a começar pelo Padre de então. Um rapaz de Soajo disse-me que era amigo dele e pediu-me para nos acompanhar, no Armão militar, até Adrão. Daí para a frente foi o terror. Eu que tinha pensado voltarmos, um dia, os dois juntos a Adrão, tive de o levar morto e entrega-lo a meus pais.
Na minha cabeça, tenho sempre imagens de Adrão
A infantaria 8 enviou um pelotão para lhe prestar homenagem e descarregar os 21 tiros no Cemitério de Adrão. O eco dos tiros regressava da Açoreira e parecia-me que todas as montanhas, em redor, choravam. Estive 5 dias e 5 noites sem dormir e nunca mais consegui esquecer os piores dias da minha vida. Parece que não mas mantemo-nos sempre juntos.
Hoje peguei no meu Organizer e a foto caiu-me na gaveta da secretária. Foi a cunhada que nunca chegou a conhecer que andou a mexer nela e ela ficou mal colocada. Disse para mim que estava na hora de o recordar àqueles que foram seus amigos e à nossa gente.
Hoje coloco-o aqui para aqueles que o conheceram, o recordarem.