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Adrão e o Ventor

nas suas caminhadas por Adrão e pela serra de Soajo. Eu nasci na serra de Soajo e Adrão, nas suas encostas, é o meu berço

Adrão e o Ventor

nas suas caminhadas por Adrão e pela serra de Soajo. Eu nasci na serra de Soajo e Adrão, nas suas encostas, é o meu berço

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Vejam estes golosos a comer rojões assados na serra mais linda do mundo - a serra de Soajo


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Assar rojões na serra de Soajo, nos braseiros dos torgos das urzes, é uma tradição de séculos. Os que eles estão a comer em cima, são estes. Eu estou de serviço às fotos.

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Uma Caminhada de Sonhos

Esta noite, depois de uma conversa telefónica com o Luis Perricho, sobre uma eventual caminhada entre a Peneda e Sistelo, ele falou-me do caminho dos romeiros.

Pois, com romeiros ou sem romeiros eu convenci-me, sonhando, que no Gondomil, também passavam os romeiros de Cunhas, de Paradela e, se calhar, de outros lados. Talvez do lado de lá do Lima, pois antigamente nem haviam estradas, quanto mais carros. Pois foi! Não procurei o caminho dos romeiro de Sistelo para a Peneda mas andei a caminhar no Gondomil.

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Como são lindas as nossas paisagens - Gondomil

Por acaso, já foi a terceira vez que sonhei com essa caminhada. Eu recordo-me do tempo que saía com as vacas da Açoreira, pelo Barroco, à presa do Cabreiro, virava-as para o Gondomil e, à tarde, regressava rumo à Açoreira. Também fazia isso, com saída do Lugar de Adrão, rumo à Corga das Estacas, Chãe do Ruivo, Gondomil, ... Tinha por companhia, nessas caminhadas, algumas vezes, o ti João Perricho e o ti Bento Ribeiro, velhotes que não esqueço. Uma vez, no Gondomil, a minha acção de maior destaque, foi correr tanto que consegui roubar uma ovelha da tia Custódia a uma raposa. A raposa tentava apanhar a ovelha e rodavam monte abaixo, engalfinhadas uma na outra por entre as urzes, floridas de branco. Fiquei sempre com essas imagens na cabeça e, faço ideia das pragas que a raposa me teria rogado se falasse.

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 Como se enquadra bem Adrão nessa beleza das minhas Montanhas Lindas

Foi assim que esta noite voltei a ver Adrão do Gondomil! A Adrão escura e velha, sem casas pintadas de cores e com os fumos dos almoços das gentes que, na sua azáfama, faziam os almoços para a família. Essa é a minha Adrão! Nessa altura, eu almoçava o meu pão com presunto, chouriço ou bacalhau, na Chãe do Ruivo e bebia na nascente que havia, ainda haverá, na tapada do ti João Perricho. Por isso, uma caminhada que eu e o Luis Perricho já tínhamos em vista, foi realizada em sonhos, esta noite.

Ainda espero vir a realizá-la nos próximos tempos.


As Montanhas Lindas do Ventor, são as montanhas da serra de Soajo, da serra Amarela, do Gerês, ... são as montanhas dos meus sonhos e são, também, as montanhas de toda a minha gente

Olhar para trás

Olhar para trás obriga-nos a nunca nos desligarmos daqueles a quem queremos bem. Ajuda-nos, também, a termos cautela com o nosso futuro e, a não esquecermos os nossos trilhos. Sempre que faço uma retrospectiva sobre a minha vida por Adrão e por Paradela, não esqueço nada do passado. Vivo-o como vivo o presente.

Recordo como eram belos os tempos por Adrão, em meados do séc. passado (meados do séc XX). Mas havia um senão! Adrão tinha muita gente e gente habituada a conquistar outros mundos. Nós éramos putos e a debandada era geral. A gente de Adrão seguia vários rumos. O rumo de Lisboa, o rumo da França, o rumo da América, ... Nós, os putos, tínhamos o céu azul ou coberto de nuvens, tínhamos as rochas e os horizontes sobre os cumes das montanhas da serra de Soajo, tínhamos os bosques de Adrão com os seus carvalhais e o seu cheiro a láudano, os vidoeiros, sobreiros, castanheiros, salgueiros ... nas bouças. Tínhamos os prados de feno, os campos de milho, as hortas e, tínhamos os nossos rios, recheados de trutas e com as margens cheias de flores de silvas e as amoras silvestres. Tínhamos os nossos gados. Tínhamos tudo o que era belo, em Adrão. E tínhamos, também, os horizontes abertos sobre a serra Amarela. Então, também chegou a minha vez.

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Flores das silvas e amoras que, noutros tempos, eram delícias, em Adrão

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Ainda hoje sinto o perfume dos carvalhos, em Adrão. Por isso me acho um druida

Também chegou a minha vez de ultrapassar os horizontes visíveis e a saída era pela Quelha da Costa. Ali e, por acaso, nesse dia, encontrei dois dos mais belos companheiros da minha vida de então (eu esperava não encontrar ninguém). O meu irmão e a minha prima Rosa por quem ia velando como podia. Quantas vezes tomava conta de um ou do outro ou dos dois.

Ele era meu irmão e chamava-se Manuel.

Era meu irmão e continuará sempre a ser. As Parkas pensam que o tiraram de junto de mim mas não o conseguiram. Ninguém, nem as Parcas me roubam a minha gente. Para isso tinham de me roubar o coração ou, então, roubar-me a mim. Quando esse tempo chegar, talvez o consigam.

 Foram assim os piores momentos da minha vida:

Um dia, 3 de Março, em 1961, peguei numa mala de cartão e o meu coração “chorava” baixinho. Encontrei-o na Quelha da Costa, em Adrão, na companhia da nossa prima Rosa Barbosa. A professora tinha faltado e não tinha havido aulas. Olharam-me e perguntaram: “para onde vais Luis”? Eu disse: “vou para Lisboa, vamos estar muito tempo sem nos vermos. Eles ficaram para trás a choramingar e eu subi a Quelha da Costa, rumo ao desconhecido.

Depois vi-o, mais duas ou três vezes, em Adrão. Da última vez tinha duas rolinhas que ele criara, presas numa gaiola. Disse-lhe: “acho que te vou soltar as rolas. Esses animais só devem viver em liberdade”. Pediu-me por tudo para não lhe soltar as rolas mas, eu só queria que ele não se habituasse a apanhar e prender os animais selvagens. Não é por acaso que as rolas bravas estão sempre no meu coração. Depois passaram anos sem nos vermos.

Faz agora 46 anos que eu me preparava para sair de Nova Freixo, no norte de Moçambique e ele era a pessoa em que eu mais pensava. Em breve estaríamos em Lisboa juntos e depois logo se via que volta darmos à nossa vida. Assim foi! Caminhamos algumas vezes juntos por Lisboa, durante algum tempo, mas a tropa separou-nos.

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Manuel Franqueira

Um dia cheguei a casa e a velhota, dona da casa, onde eu vivia e ele dormiu algumas vezes, disse-me: “sr. Luis, o seu irmão partiu uma perna e levaram-no para o Hospital Militar da Estrela. Vá ter com este Sargento”. Senti que ela se evadiu da minha presença, parecendo-me chorosa. E lá fui. Cheguei à Av. Infante Santo e, quando me identifiquei, perante esse Sargento Enfermeiro, o homem começou a chorar. Deu-me a notícia. Esse sargento disse-me que ele falecera. “Morreu nos meus braços, ao atravessarmos a ponte sobre o Tejo. Está na capelinha X”. Chorava como se fosse um grande amigo seu. Eu sabia como era, pois também chorei por outros em África. Só que esses eram meus amigos.

Nunca tinha tido uma tormenta na vida, nem nos tempos mais difíceis, mas ela chegou nesse dia. Atravessei a Av. Infante Santo, completamente cego. Só ouvia os carros a apitar, suponho que, mandando vir comigo. Passei grande parte da noite, só, mais ele, nessa capelinha. Mas os seus companheiros militares pediram ao Comandante para os deixar irem prestar-lhe uma última homenagem. Iam e vinham sempre, a renderem-se, pela noite dentro. No dia seguinte, vieram a namorada mais o pai ter comigo à Estrela, também para o verem uma última vez.

 Levei-o para Adrão, perdemos-nos, com o nevoeiro, na serra da Falperra, em Braga. Passamos no meio dos seus velhos amigos da Infantaria 8, em exercícios que, vendo o Armão militar e a sua urna coberta com a Bandeira Nacional, se perfilavam e apresentavam armas às ordens dos seus oficiais que faziam a continência. Parece que Deus quis que se voltassem a encontrar. Ele fizera lá a recruta. Os grupos nunca mais acabavam. Uns caminhavam na estrada da serra, outros desciam ou subiam para a estrada. Foi um pedaço da viagem que me dilacerava o coração. Eu nunca tinha visto apresentar armas por militares que caminhavam nos matos, em grupos ou isolados. Já os tinha visto, praguejar, esbracejar, chorar, ... mas nunca apresenatar armas. Metia muito respeito um Armão militar com uma urna coberta pela bandeira nacional. "Sen .. up"! Depois encaminharam-nos no meio de nevoeiros, já esfarrapados, rumo a Arcos de Valdevez.

Dos Arcos para cima, saímos bem, mas os militares não conheciam nada e eu passei o Triângulo do Mesio, sem o ver. Fomos até Soajo. Pareceu-me que o meu Senhor da Esfera o levara para se despedir de Soajo, onde tinha amigos a começar pelo Padre de então. Um rapaz de Soajo disse-me que era amigo dele e pediu-me para nos acompanhar, no Armão militar, até Adrão. Daí para a frente foi o terror. Eu que tinha pensado voltarmos, um dia, os dois juntos a Adrão, tive de o levar morto e entrega-lo a meus pais.

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Na minha cabeça, tenho sempre imagens de Adrão

A infantaria 8 enviou um pelotão para lhe prestar homenagem e descarregar os 21 tiros no Cemitério de Adrão. O eco dos tiros regressava da Açoreira e parecia-me que todas as montanhas, em redor, choravam. Estive 5 dias e 5 noites sem dormir e nunca mais consegui esquecer os piores dias da minha vida. Parece que não mas mantemo-nos sempre juntos.

Hoje peguei no meu Organizer e a foto caiu-me na gaveta da secretária. Foi a cunhada que nunca chegou a conhecer que andou a mexer nela e ela ficou mal colocada. Disse para mim que estava na hora de o recordar àqueles que foram seus amigos e à nossa gente.

Hoje coloco-o aqui para aqueles que o conheceram, o recordarem.


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A Roca, o Fuso e a Lã

Em tempo de chuva, em Adrão, pelos outonos e invernos, havia sempre que fazer. A prioridade era tratar dos animais. Às vezes a chuva era tanta que até para acender o lume podia ser um problema. A humidade era de tal ordem que não era brincadeira acender o lume para fazer o braseiro que iria aquecer o borralho e, com ele, toda a casa.

As achas e os canhotos dos carvalhos ou torgos de urzes, eram o melhor combustível que tínhamos em Adrão. Mas, antes, tínhamos de ter umas chamicinhas bem secas, normalmente de urze, para tirar a humidade às achas, secando-as bem e pô-las a arder até conseguirmos o braseiro desejado. Ainda me recordo da tia Bondeira (quantas vezes), aproveitar uma pausa nas chuvas "bocanho", para atravessar o caminho até à nossa casa e perguntar à minha mãe: "Teresa, já tens umas chamicinhas bem secas ou umas brasinhas"?

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Hoje seria assim, o Ventor transportaria as chamiças se por lá andasse

"Àvô estávô! Como eu me vi para acender o lume hoje, tia Teresa! Veja ali debaixo do escano se arranja umas mais sequinhas senão gasta os fósforos todos"! E a conversa continuava sobre o que fosse. Sobre a chuva que nunca mais parava e aquela humidade que nos destroçava os ossos, enquanto cada um tentava resolver a azáfama em que estava metido. Vacas tratadas, porco tratado, galinhas no poleiro e, no meio da escuridão como o breu, só se ouvia a chuva a lavar as telhas e a descer dos telhados em pingas apressadas ou fios de água contínua e, com aquela lenha húmida a arder, libertando os fumes que, atirados contra o telhado, teimavam em voltar a descer como se já estivessem com saudades das achas que tinham abandonado para trás.

Depois vinha o "conduto" e de seguida o caldo. Era a altura ideal para fritar os "joaquinzinhos" ou as sardinhas que a tia Pedreira teimava em levar a Adrão, sempre que lhe era possível. Ou então poderia ser o "bolo da pedra", com as sardinhas a pingar por cima de uma fatia ou barrado com manteiga feita pela minha mãe e, de seguida, o caldinho. Quantas vezes, no tempo dos cagordos, machouchos ou cogumelos (como quiserem), eu levava para casa aqueles "larápios", belos chapéus abertos com os quais se faziam uns belos petiscos.

Depois da ceia, era assim que chamávamos, em Adrão, ao nosso jantar actual, ninguém queria arredar pé do borralho por causa do braseiro. Eu sentava-me numa cortiça colocada no chão do borralho para não assentar o rabo na pedra fria e, como não tinha nada para fazer olhava o braseiro incandescente imaginando os vulcões de que ouvia falar na Tasca do meu amigo Carrasco, quando ele acendia a telefonia para ouvir as notícias mas, de repente, a minha mãe tirava-me os olhos do braseiro e obrigava-me a olhar a roca e o fuso, levando-me a esquecer os vulcões e tantas outras coisas que já, então, me levavam a penetrar na senda dos sonhos. Ficava todo encantado a ver o fuso, naquela azáfama, numa das mãos enquanto a outra ripava a lã e a puxava da roca em direcção ao fuso.

A roca e o fuso, tal como em Adrão, em La Rochelle, França, pintada por um homem das Belas-Artes, William-Adolphe Bouguereau

"Luis, ajuda aqui"! A roca já não tinha lã e o fuso estava cheio de um grande fio todo enrolado nele.

"Agarra aqui no fuso e não o prendas, deixa-o girar, porque temos de fazer um novelo de lã para a tua irmã continuar a fazer a camisola para o ti António de Ramil, porque dizem que está muito frio, em França. Temos de fazer a camisola depressa porque, se ele vier cá passar o Natal leva-a vestida e se não vier, vamos tentar arranjar quem a leve. Temos de trabalhar muito para a acabar depressa"!

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Falta a lã e falta o fuso, mas estamos nós dois (Rosa e Luis) e a roca

Olhava para a minha irmã e lá estava ela a mexer aquelas agulhas nos dedos como se estivesse a desenrolar rebuçados. Agulhas nas mãos, o novelo a acabar, metido no bolso do avental, e o fio que saía do novelo e acho que passava por um alfinete de dama que tinha colocado, junto ao ombro, na camisola que tinha vestida. O meu pai sentado no escano de madeira, já a dormitar, deixando que a cabeça quase abandonasse o pescoço e fosse para cima das brasas. A cadela, a nossa violeta, lambia o resto do comer que ainda tinha numa cunca de madeira que eu tinha feito para ela e a minha mãe a dizer: "raio de cadela, lava os feijões tão lavadinhos, com a língua e não os come, nem um"!

De repente ouço: "oh, tu! Ainda te esqueces da cabeça. Vai mas é dormir"!

O meu pai deu um jeitinho ao corpo para se levantar, observa o lume e diz: "está um braseiro tão bom que nem apetece sair daqui". "Pois não" - diz a minha mãe - "mas, vamos tirar a humidade aos lençóis e com eles secos e quentinhos, vai ser dormir a noite toda".

Há dias chovia a potes e eu, deitado na cama quentinha, fui levado pelo barulho da chuva a recordar as minhas noites invernosas da minha meninice, por Adrão. Comecei a recordar esses tempos de chuvas geladas e frias que me faziam bater o dente pelas fraldas das minhas Montanhas Lindas e também a beleza dos braseiros nos borralhos de Adrão, nessas noites longas em que aplicávamos bem o ditado que nos diz: "deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer"! Que saudades eu tenho desses tempos difíceis!


As Montanhas Lindas do Ventor, são as montanhas da serra de Soajo, da serra Amarela, do Gerês, ... são as montanhas dos meus sonhos e são, também, as montanhas de toda a minha gente