Um Maio, na Assureira
Trabalhar à Formiga
Quando eu era pequeno, virava-me pelo mundo que me calhou em sorte e, posso garantir-vos, que era um mundo duro mas belo.
Uma coisa que me recordo bem de que não gostava quando era pequeno, era o cacarejar solitário de uma galinha no lugar de Adrão, por esta altura do ano. Isto significava que a aldeia parecia ser um ermo sem vida, mas a galinha dava sinal de que tudo continuava rolando. Todas as pessoas encontravam-se nas lavouras a preparar o Maio. Não era o som do cacarejar da galinha que me preocupava. Eu não tinha era ninguém para brincar!
De qualquer modo, era um destes o despertador que dava o pontapé de saída, logo de manhãzinha..
Este podia ser um dos muitos galos de Adrão, que nos despertava
Mas eu vou falar-vos do primeiro Maio que recordo nesta minha caminhada pela Assureira!
Neste primeiro dealbar dos meus Maios, fui com a família para a Assureira, para "fazer o Maio". Eu era muito pequeno e não percebia nada daquilo, mas lá ia atrás dos meus pais que tinham de acelerar para fazer render o dia enquanto eu ficava para trás a mandar pedrinhas sobre os alvos escolhidos, como via fazer aos mais velhos. Acertar com a pedra num alvo era um privilégio de todos e eu fiz disso um dos meus privilégios, noutros tempos.
Depois das minhas escaramuças solitárias, seria do tamanho do Tomás, lá atingi o objectivo e o objectivo era esta nossa casa na Assureira, onde guardávamos o feno e a palha do milho para as vacas, onde tínhamos o lagar para fazer o vinho e um burralho onde, por estas alturas, se fazia o caldo para todos os que trabalhavam ou que, como eu, não faziam nada.
Esta casa era a base de todos os trabalhos na Assureira
Ao chegar, encontrei o meu pai todo transpirado! Já tinha tirado o esterco quase todo da corte para fora e estava a encher um cesto. Entretanto, chegou uma mulher, daquelas que, nesse dia, trabalhavam para nós e atirou o seu cesto vazio para o chão, junto de meu pai e ele ajudou-a a carregar o que já tinha cheio. Ela ao ver-me disse-me: "anda comigo Ventor, a tua mãe deve estar nas lavouras tola da cabeça por tu não teres chegado".
Portal da Bouça que deixei aberto em Agosto. Por aqui passava tudo rumo ao Campo e ao Colado. Hoje só passa a saudade!
Os trabalhos, em Adrão, eram feitos aos dias! Isto é, não havia dinheiro e o trabalho era pago com trabalho. As pessoas combinavam e davam-se as mãos, umas às outras, para se amanharem naquelas trabalheiras que era o "deitar o Maio"! Isto significava fazer as sementeiras, e isso era uma trabalheira. Nesse dia tínhamos gente a trabalhar para nós e outros dias, minha mãe iria trabalhar com elas. Era uma forma de tirar rendimento do esforço colectivo numa determinada tarefa.
A bouça
A bouça
Descendo a nossa Bouça, era esta a paisagem em Agosto mas, nos meus tempos de criança, o caminho estava limpo, as folhas dos carvalhos (austrálias não havia, fui eu que plantei a primeira) não matavam as ervas
Lá fui atrás dessa mulher que até podia ser uma das minhas tias, não me recordo e, segui-a até encontrarmos a outra que regressaria com o cesto vazio. Num determinado sítio de encontro no meio dos carvalhos da Bouça, uma entregava a estafeta (o cesto cheio) e a outra entregava o cesto vazio, voltando a primeira até ao curral, junto do meu pai, para voltar a carregar outro cheio e deixar o vazio. Eram umas quatro, ou talvez cinco, a levarem os cestos de esterco até ao Colado. E, no último espaço da estafeta estava a minha mãe que se encarregava de esvaziar o cesto no local pretendido, deixando os montinhos de esterco devidamente espalhados pelas duas lavouras e mais pareciam montinhos de terra levantados pelas formigas, vistos cá de cima.
Dedaleiras de Sintra que hoje me mataram as saudades de outros tempos
Depois, enquanto elas continuavam a sua tarefa, eu entretinha-me a apreciar as flores e, entre elas, nos sucalcos do campo, aqui ou ali, lá estava uma dedaleira, bem vistosa a desafiar-me a mim e às abelhas, para a olharmos bem e, de preferência, com amor, coisa que eu nessa época não sentia pois um dos meus entretimentos era arrancar-lhe as flores, soprar e fazer um estalido, (troque)! Por isso, lá no Norte, nas nossas aldeias bem como na Galiza, lhe chamam «estroques», mas hoje, em Sintra, ouvi, pela primeira vez, chamar-lhe "cucos".
(Um senhor que me viu quase incendiar a máquina a tirar tantas fotos às dedaleiras, disse-me logo que a mulher era do Norte chamava-lhe "estroques" e eles ali chamavam-lhe "cucos"! De facto, elas chegam com os cucos, ou os cucos com elas)!
Quando se aproximava a hora do almoço a minha mãe chamou-me para regressar com ela pois ia subir até à casa da Assureira para fazer a sopa e assar peixe, creio que eram sardinhas que a tia Pedreira, de Soajo, levara até Adrão. Se não eram sardinhas, seriam carapaus ou xixarros, os peixes que então apareciam na bandeja de zinco da tia Pedreira.
A Lage. Em fins de Agosto de 2006 estava seca, como em quase todos os Agostos de outros tempos
Subi a Bouça atrás dela mas, mais uma vez, fui o último a chegar e, quando cheguei, já ela tinha acendido o lume no burralho, colocado o pote de ferro (teria sido dos meus avós) ao lume para ferver a água para a sopa e estava a descascar batatas. Mal cheguei, pediu-me para lhe ir buscar água, numa caneca esmaltada, para as suas necessidades de cozinha e eu, que mal poderia com a caneca vazia, lá trouxe alguma água que, por esta época do ano ainda corria aqui, neste local a que chamavam a "a Lage".
Numa determinada altura, encontrei a minha mãe a deitar o sal para uma mão com muito cuidado e a fazer cálculos para deitar o sal na sopa mas, acrescentando, por fim, mais um pouquinho. Desceu para ir perguntar algo ao meu pai e eu que a achei demasiado poupada, pensei um pouco e resovi acrescentar bastante mais, pois como as pessoas trabalhavam muio teriam de ter sal que bastasse! Claro que estraguei a sopa e depois foi o diabo! Tiveram de ir à outra Assureira, a Assureira das Portas, onde duas famílias viviam a sua vida permanente e não tinham a preocupação de ir para o Eido todos os dias como nós. A "matriarca" duma dessas famílias era a tia Luisa, minha grande amiga, que logo se prontificou a ajudar e fazendo para mim para as outras pessoas, um caldo de leite como eu gostava.
Mais à frente, a mina, em Agosto de 2006 que, noutros tempos, seria a minha tormenta, quando a Lage secava. A Lage e a mina ficavam mesmo em frente da nossa porta, talvez uns 100 metros
A minha mãe, nessa altura, se pudesse, tinha-me atirado às cobras mas as senhoras que sairam prejudicadas daquela minha amabilidade de oferecer sal que chegasse para fazer uma sopa robusta não se chatearam nada, comeram o peixe e, depois, o caldo de leite da tia Luisa. À porta dessa corte, quando o meu avô desempenhava o trabalho que o meu pai fazia nesse dia, tinha eu, quando ainda não caminhava, ficado ali a dormir e quando o meu avô foi ver a razão porque eu não me calava, deu com uma cobra enroladinha nos "fatelos" deste vosso amigo, toda invejosa a querer partilhar a minha cama. Como vêm já tive, pelo menos, uma cobra minha amiga!