Adrão - As minhas luvas
Um belo presente!
Há muitos anos atrás, num dos muitos natais em que recordamos essa história linda do nascimento do Menino, eu também era menino e, se não vivia entre os doutores, vivia entre homens que tudo sabiam para levarem avante a continuação de melhor moldarem os trilhos que herdaram dos seus antepassados. Homens que viviam até perto da centena de anos e que um qualquer dia que se aproximaria com uma simples gripe, se calhar das velhas galinhas, eles se colocavam naquilo a que podemos chamar um "Portal" por onde se fazia o transporte para outro mundo - o derradeiro!
Eu, sentado no meu baixo pedestal, olhava aquelas rugas cansadas de verem os anos passar e perguntava-me, a mim mesmo, se um dia viria a ser portador daqueles sulcos cavados pela caminhada dos anos e que eu imaginava quantas caminhadas, sobre tamancos, teriam feito pelos mesmos caminhos que eu também utilizava. Lembro-me perfeitamente de muitos dos 15 natais que passei na minha velha aldeia durante aquela quinzena de vida, especialmente do último terço.
Eu, só, ou na companhia dos meus pais, íamos desejar as Boas Festas àqueles que, pelos anos fora, caminhavam mais tempo e mais perto de nós. Num desses natais, muito friorento, recordo-me de umas luvas de lã que a minha irmã me ofereceu como presente de Natal. Algum tempo antes do Natal, ela preparou a lã, cortada de ovelhas da nossa terra, que pastavam pelas minhas Montanhas Lindas. As ovelhas eram tosquiadas pelos fins de Maio, princípios de Junho, e como pelo Verão fora havia muito trabalho, só depois do vinho novo as mulheres se dedicavam a tarefas mais sedentárias, como fazer coisas de lã para a família. A lã era lavada, cardada, fiada, dobada, e tricotada à mão. O trabalho dos homens durante o Inverno era tratar do gado e o trabalho das mulheres era mais genérico. Cozinhar, fazer malha, camisolas, meias, luvas e o gado!
Estas são helvéticas. Também foram uma bela prenda da dona do meu Quico e minha
Nessa altura, eu sentava-me no chão da lareira num pedaço de cortiça e às vezes segurava aquelas braçadas de fio que a minha mãe ou a minha irmã enrolavam fazendo novelos que depois desfaziam tricotando enquanto eu via crescer aquelas belas peças de roupa. Mas eu nunca mais esqueci essas luvas de lã branca que a minha irmã tricotando em contra-relógio para as ter prontas e mas oferecer antes do Natal, só se deitava noite dentro, trabalhando à luz da candeia de petróleo que tinha de ser poupado porque às vezes faltava.
Mas eu, sempre desprendido de tudo, nem imaginava que aquelas luvas fossem para mim. Ventor, vais pôr o comer às galinhas? Ventor, vais à horta às couves? Ventor, vais-me buscar água à fonte? E assim por diante! Às vezes, quando me prejudicava alguma brincadeira com os meus amigos, chegava a ir contrariado, mas estava sempre disponível para a ajudar a acabar aqueles trabalhos para casa ou para alguma velhota nossa amiga.
Nunca mais fiquei com as costas das minhas mãos enegrecidas pelo frio. Mas recordo-me da cara da minha irmã preocupada por não conseguir arranjar a tinta a tempo de as tingir com a minha cor preferida - o azul - e eu a tentar consola-la dizendo-lhe que quando chegasse a Primavera eu ia ser brindado com as mais belas cores das minhas flores e as luvas estavam bonitas assim.
Nessa noite de natal estreei as minhas luvas de lã branca e com elas acenava aos meus amigos velhotes desejando-lhes Boas Festas e via que eles olhavam espantados o trabalho realizado por uma moça que pouco mais era que uma criança. Essas luvas foram um presente que nunca mais esqueci! Porque ajudei a dobar a lã, a enrola-la e, indirectamente, a fazer outros trabalhos que já nessa altura foram uma escola de aprendizagem na feitura de trabalhos em equipa, que sempre utilizei pela vida fora.
Ao tempo, não havia luz eléctrica nas nossas aldeias e nas noites escuras de Inverno quando faltava a minha amiga Diana e, nas nossas "avenidas" cheias de lamaçal originado pelas chuvadas ou pelas neves derretidas, caminhava-se de lanterna de petróleo ou de carbonetos na mão, mas nessas noites escuras eu possuía a mais bela maquineta que o homem tinha inventado "a minha pilha de olho de boi" que, para mim, era digna sucessora dos meus amigos Apolo e Diana. Recordo-me de juntar todos os tostões para comprar ao meu amigo Carrasco a velha pilha espalmada de 4,5 volts que colocava na maquineta com as minhas luvas de lã macia e era esse instrumento que me alumiava quando eu ia deitar a ceia de Natal (belíssimas braçadas de feno) às minhas vacas, utilizando também as minhas luvas e a minha galanta habituada a me lamber as mãos quase mas arrancava quando passava aquela grande língua por elas.
Feliz Natal para todos.