Memória de um Combate
Quando era pequeno, já trabalhava, pois claro! Em Adrão começava-se a trabalhar desde que se nascia.
Uma vez ia apanhar agriões bravos junto ao rego da água para regar toda a Veiga. Minha mãe encontrou-me junto à cancela da Veiga e deu-me logo uma tarefa! Perguntou-me que ia fazer e eu disse-lhe que ia arranjar comer para os coelhos e agriões junto ao rego. Eu gostava de lavar os agriões no rego e come-los assim passados pela água fresca que vinha do rio. Naquela altura a água do rio era limpinha! Quem dera hoje fosse assim!
“Nesse caso” -disse ela - “podes trazer-me couves da horta da Veiga para o nosso almoço e também para os coelhos”. Nessa altura eu tinha dois coelhos que a minha tinha Florinda da Várzea me tinha oferecido e com eles eu especializava-me todos os dias na bicharada que me acompanhava, dia a dia, na minha labuta.
O troço do rio ao fundo da Veiga, chama-se rio da Turgueira. Este foi o local do combate
Fui à horta, apanhei as couves e ao sair da horta, sentei-me no socalco da lavoura pendurado para o rio, à sombra de um vidoeiro. Comecei a olhar o poço por baixo e a meditar sobre o meu disparate, sempre que descia o socalco para, mais ou menos a meio, saltar de uma altura enorme para a água em que muitas vezes parecia que rebentava por dentro ao bater no fundo do poço. Em volta do poço e ao correr do rio, haviam umas ervas tenrinhas a que a gente da terra chama carriço e que eu pensava ir a seguir ao almoço com uma foicinha corta-las e leva-las para dar à minha maravilha de poucos meses, uma vitela a que chamava Nova!
Ali, sentado no socalco, observei todo o ambiente e reparei no que nunca tinha visto. A voar sobre o rio, vale abaixo, duas aves de rapina, em pleno combate! Pareciam os aviões que muitos anos mais tarde vi fazer voos de treino aéreo de combate, a brincar, nos arredores da cidade de Vila Cabral, em Moçambique. Mas, para as aves de rapina, a luta ali, era de morte!
Uma águia
Não é a águia real do célebre combate, na zona da Turgueira, em Adrão, mas mete respeito
Uma águia e um milhafre, tinham-se zangado algures e trouxeram a luta para junto de mim. Ali, à sombra do vidoeiro e também resguardado por ele, verifiquei que o milhafre vinha a dar uma grande tareia na águia. Ela voava por baixo com intuito de fuga, e ele picava em voos rápidos sobre ela arrancando-lhe penas da cabeça. Eu via mesmo o milhafre picar e arrancar penas da cabeça da águia e sempre que havia o impacto do milhafre sobre a águia ela descaía no ar, perdendo altura. Por fim, já juntinhos a mim, mas do lado de lá do rio, a apenas uns metros, a águia poisou sobre o pau de uma meda de feno.
Com a águia pousada no pau, o milhafre subia e fazia voo picado sobre ela espetando-se sobre a cabeça dela com uma grande bicada na nuca e a águia continuava pousada a levar tareia e a fazer um esforço enorme para não cair da meda abaixo, afocinhando
sempre que se dava o impacto. Cheguei a pensar que ia levar uma águia morta para casa, como troféu, mas também cheguei a pensar o que fazer para acabar com aquela luta que tanto se assemelhava à célebre luta entre David e Golias de que já ouvira falar. Mais tarde, vim a saber que se tratava de uma águia-real.
Quando pensava que fazer para acabar com o suplício da águia e se preparava para descer o socalco para o rio e espantar o milhafre, julgava que a águia não se iria importar nada mas, nesse momento, ela levantou voo e o milhafre ainda fez uns dois voos picados com arranque de mais umas penas na cabeça dela e quando ele se preparava para fazer mais uma investida sobre a águia, a terceira desde que ela levantara voo, reparei que a águia, ali à sua frente, apenas com o rio pelo meio, inclinou um pouco a cabeça para o seu lado esquerdo, o lado oposto ao meu, para verificar se o milhafre vinha aí. De repente ele faz um grande voo picado sobre a águia que me parecia que com aquela força de violência tal, seria a estucada final na desgraçada da águia. Mas desiludem-se! No momento em que o milhafre picou e se ia dar o impacto, a águia inverteu o voo e recebeu o impacto do milhafre contra o seu peito e, nesse instante, deu-lhe o abraço da morte. Os dois vultos voadores transformaram-se num só e ainda vi, enquanto tive espaço, a águia em voo a picar o milhafre e as penas dele a esvoaçar para trás desse vulto.
A beleza de um Milhafre Real
Foi uma luta que nunca imaginei que se pudesse desencadear com tanta violência e ainda hoje penso que um dos dois deveria ter fugido, mas não. Acho que a águia, desde que eu os vi, estava em fuga e quando parou no pau da meda era para ganhar forças pois via-se que estava cansada e de bico aberto e cheguei a pensar que o fim dela ia ser ali.
Não sei se o milhafre teve conhecimento da luta entre David e Golias e se até, entre eles, também existe uma história semelhante, mas sei que nunca devemos dar numa luta, a vantagem como vitória certa, mesmo quando essa vantagem é bem evidente. Para mim serviu-me sempre de exemplo aquela luta e ainda hoje vive na minha memória.
Claro que todos poderão pensar que esta história não tem pés nem cabeça, sobretudo aqueles que conhecem bem o milhafre e a águia. Pois foi exactamente assim! Ao poder da águia opôs-se a leveza e a agilidade do milhafre. Todo o combate foi, desde que eu assisti, do domínio do milhafre. Mas há sempre um senão. O milhafre esqueceu-se que as manobras, quando em demasia, podem prejudicar-nos, denunciando a tática. E esqueceu-se, também, que a luta entre David e Golias não tem semelhança pois foi utilizada uma arma ligeira, mas com poder mortífero. Não foi um duelo resolvido à estalada ou à bicada.