A Sonhadora e o Rio de Adrão
O Rio
É o melhor rio do mundo para o Ventor.
É um rio em que todas as pedrinhas, todas as cachoeiras, todos os poços, todos os salgueiros, todas as silvas, todos os tufos de carriço e os carvalhos que sobre ele se debruçam para espreitar o movimento das águas e escutar as suas melodias, estão registados em forma de imagens que não há foto alguma que consiga captar!
Aqui nasce o rio de Adrão. Estas são as primeiras gotas a sair da terra, num qualquer mês de Agosto
O Rio!
É verdade que já foi o maior rio do vosso amigo Ventor, quando ele com um pé sobre uma pedra, media a distância com o olhar para a outra a ver se conseguia dar mais uma das suas firmes e célebres passadas e seguir em frente. Tantas vezes, numa dessas passadas, o Ventor tinha de pôr a roupa a enxugar para não andar molhado!
Mas o rio nasce lá no alto da montanha por debaixo do pico máximo que se vê da aldeia, o Alto da Derrilheira, num local que se chama Sorreiros. Esse local, há muitos anos atrás, era um grande matagal de urzes compactas por entre as quais subiam e desciam as cabras da aldeia enfrentando os lobos esfomeados.
Pelo cerro da montanha abaixo fica o Alto do Lombo! As primeiras águas dos Sorreiros, no verão, correm devagarinho perante ervas, fetos e urzes e dirigem-se lentamente para a Corga da Naia.
Um troço da Corga da Naia, escondida nesses montes. Por ela correm as primeiras águas do rio de Adrão. Foto tirada do Penedo do Osso
Aqui, a Corga da Naia, fotografia tirada das Fontes
O rio nasce à esquerda da foto, na zona verde, em cima. A água desce para a nossa direita e depois desce pela corga da Naia e ruma ao Lugar de Adrão
Do lado oposto há outra nascente que debita as águas para o rio de Bordença onde existe uma ponte rudimentar que dizem poder ter sido romana mas, nem só os romanos faziam pontes. Por ali se caminhava rumo à Galiza, mais um dos Caminhos de Santiago.
Agora vou-vos contar a história de uma minha amiga. Uma gotinha de água a que chamo Sonhadora, que nasceu e desceu o rio durante um mês de Julho.
A Sonhadora nasceu ali pelos Sorreiros.
De dentro do monte brotam as gotas de água e a Sonhadora, uma dessas gotas que corre ao lado de muitas outras, tal como o Ventor, rola apreciando a paisagem. Ela sai das entranhas da terra, olha Apolo caminhando no céu azul e começa a apreciar tudo, desde o mais simples ao mais complexo obstáculo.
A gotinha respira fundo e o seu primeiro encontro é com a areia que se desvia à passagem rocambolesca do seu grupo. De frente encontra um tufo de ervas e ela topa uma ervinha mais isolada e entra na base do seu eixo correndo em todo o seu comprimento e depois, já na ponta, espreguiça-se um pouco e forma o seu primeiro salto perigoso.
Enrola-se toda e, sem largar o grupo, vai de encontro à primeira pedra, para ela uma grande rocha, onde faz ricochete e é atirada contra outra. Depois, ela e as suas companheiras, prosseguem nos seus trilhos onde se vão juntando a mais gotas, muitas gotas provenientes de outras fontes e vão-se misturando umas com as outras formando já um belo corpo líquido. Mais abaixo, mais um encontro. As gotas que descem da Fonte da Naia encontram-se com as que descem dos Sorreiros e engrossam o grupo que já canta laudas aos belos montes por onde caminham e por onde também caminhava o Ventor - no nosso Locus Amoenos.
Em cima de uma pedra molhada está uma rã cantarolando ladainhas à água e, mais ao lado, uma cobra fazendo que canta parecendo entreter a água e tentando enganar a rã. Mas esta, quando a cobra forma a estucada, salta para a água atropelando a Sonhadora.
Uma rã
Ali começa logo a guerra dos mundos!
Mais em baixo, um grande sardão verde, com parte do peito e do pescoço azuis, muito sereno, sobre a rocha meio molhada ao lado da qual caminha um insecto a que chamam escaravelho. A este o lagarto tenta enganar fazendo que, naquele momento, só os raios de Apolo lhe interessam. O escaravelho entretido a ouvir o cantarolar da água, no instante que a Sonhadora lhe grita "cuidado", deixa-se apanhar pelo lagarto que louva os seus deuses por mais aquele petisco que lhe vai dar energias para continuar a sua caminhada junto com Apolo.
Mais em baixo outras águas se vão juntando. As que nascem na Chãe do Boi, e na Charneca, na margem esquerda, e as que nascem na margem direita ao fundo do Alto do Lombo, pelos lados de Fontoura.
A gotinha continua a caminhar e, depois, entra num sítio onde os raios de sol se perdem durante algum tempo. É um troço terrível onde ninguém se lhe chega e a que chamam o Rio da Fraga! Foi ali que existiram as últimas corsas das montanhas de Adrão. Ali houve corsas segundo me diziam ainda nos tempos de puto do Ventor e por ali as águias se mantinham sossegadas sem que ninguém as martirizasse quando queriam descansar. Chamam-lhe o Rio da Fraga, eu chamar-lhe-ia a Garganta Negra.
Uma foto do rio da Fraga tirada da Corga da Naia
Ali, eu tenho a certeza que, ninguém, a não ser corsas, águias e falcões, pouco mais, ninguém se atrevia a pôr os pés junto ao troço do rio, depois do nosso poço de banhos, mais abaixo. Eu bem tentei e nunca consegui e sítio onde o Ventor tentasse e não conseguisse, acredito que não valeria a pena alguém tentar.
Mas, continuando a receber amigas, a nossa Sonhadora sai da sombra e volta a exibir-se para todos que fazem o mundo lindo, como o Ventor e seus amigos, as vacas, as cabras, as ovelhas e demais animais, sem os quais o cantarolar das águas não teria qualquer interesse. A Sonhadora voltou a gritar: "o mundo é lindo"! E é!
A nossa gotinha, na sua caminhada, procurava não ser ingerida pelos animais que se aproximavam da água onde procuravam matar a sede e só pensava prosseguir o seu sonho - descer rio abaixo e chegar ao mar!
Ao entrar no troço do rio a que chamam Rio da Leira, além das gotinhas ingeridas pelos animais, a gotinha perdeu muitas outras amigas, que foram desviadas para regarem as terras. Mas sempre no princípio de sorte de uns e azar de outros, a Sonhadora continua a sua caminhada e, mais abaixo, é desviada, também, para um rego de água, mas este levava a água para fazer rodar a mó do primeiro moinho operacional que aparecia na aldeia. Para trás já tinham ficado as ruínas de outro. Numa leva, muito a pique, ela sentiu cócegas na barriga bojuda e foi atirada a alta velocidade contra aquele rodízio de madeira que fazia rodar, em cima, a mó que esmagava o grão de milho do ano anterior, o predecessor do tal que outras velhas amigas tinham sido chamadas a proteger da sede para que, no ano seguinte, outras gotas levassem a bom caminho outros milhos e outros moinhos. Fazia parte do ciclo.
Uma lavandisca, uma das mais belas companheiras das caminhadas do Ventor
Saída do moinho, ela volta ao rio e caminha de mansinho de poço em poço, ao mesmo tempo que ia ficando nos recantos, em remansos de águas apreciando o que se passa em redor. À sombra dos salgueiros um melro desce à água e bebe numa pocinha de outras águas que rodopiam lentamente entre os carriços. Mais ao lado, uma alvéola ou lavandisca, pousa numa pedra húmida ao seu lado, dando ao rabinho de penas negras, movimentos verticais, e ia cirandando rio abaixo e rio acima.
Mas não fica por ali. Uma toupeira de água passa juntinho e ela é empurrada pela força motriz que a toupeira origina à passagem. Por ali a gotinha continua rodopiando lentamente e mais um belo bicho lhe passa por cima e ela, pelas experiências dos ciclos de vida que tem, repara mais uma vez tratar-se de um guarda-rios. O guarda-rios segue rio abaixo e, a seu lado, no remanso de águas originado pelas forças de retenção que a obrigam a permanecer por mais algum tempo naquele local onde havia um belo baile de outros bichos seus conhecidos. Era um baile de cabras-cegas.
Dança das cabras-cegas
Por fim, a Sonhadora segue viagem. Desce o rio com a lentidão proporcionada pelas securas do verão. Num poço uns putos tomam banho e mergulham nas águas mais profundas e a Sonhadora, embora sempre alerta, entra na boca de um deles e pensa que é o seu fim. Mas não, o puto deita a água fora e a Sonhadora acabou por se desenvencilhar de um possível martírio. Prossegue viagem até à ponte, mas antes, há mais um rego e a passagem por mais um moinho.
Porém, desta vez, a Sonhadora continua pelo rio e outras amigas encaminharam-se para as águas que vão dar a força motriz ao moinho da Ponte. Enquanto elas passam por cima para depois caírem a pique com as cócegas na barriga, a nossa amiga Sonhadora foi-se meter em mais uma alhada.
O moinho e o poço da Ponte, onde termina a primeira etapa da bolhinha sonhadora
Ao lado do moinho, no leito do rio, estavam duas mulheres do Lugar (uma era a mãe do Ventor) a lavar roupa e a Sonhadora ia asfixiando no meio do sabão azul e branco. Mas por entre camisas, lençóis e mãos que a tentaram esfarelar contra a rocha, a Sonhadora escapou-se, por entre os dedos, para o poço de baixo. Ali andavam amigos do Ventor a apanhar girinos (os nossos velhos carrapatos - futuras rãs) para aprisionar em charquinhos de água à margem do poço. A gotinha esteve quase cercada num desses charquinhos, mas escapuliu-se para o poço, junto à ponte, onde haveria mais uma divisão de águas e onde a Sonhadora poderia ter perdido o seu sonho.